segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Júlio Dantas e Vitorino Nemésio

Júlio Dantas

Não pude, com pesar meu, corresponder ao convite para assistir à sessão que a Academia das Ciências acaba de dedicar, à memória do seu presidente honorário, Júlio Dantas, na qual o seu sucessor, na cadeira de académico efectivo, o Prof. Vitorino Nemésio, fez brilhantemente a elogio histórico da grande figura literária e diplomática desaparecida, seguindo-se-lhe, ainda com maior brilho, o Dr. Augusto de Castro, diplomata e mestre de jornalismo.

Entretanto, a leitura dos jornais transportou-me à solene sala e aos momentos ali vividos, perante “rostos que vi e mãos que apertei”…

Devo a Júlio Dantas, grande de Portugal, no estilo como no porte, palavras de nobre acolhimento; e faz-me bem apregoar a gratidão, tão esquecida por aí fora, dizendo também o que possa elucidar ou edificar algum leitor jovem, desejoso de assistir a um surto futuro de cultura genuína, no meio dos cristãos reformados.

Quem procure conhecer a obra dantasiana terá de começar pela adolescência precoce do “Nada” e as verduras da mocidade irreverente, no “Auto da Rainha Cláudia”, desse que seria traduzido e aplaudido pela Europa fora, com a “Ceia dos Cardeais”; esse que enriquecera a arte portuguesa com tantas jóias, e na fecunda velhice deixaria inacabada uma “Tentação do Dr. Fausto”.

Quanto haveria para dizer sobre tão vasta actividade! Mas devo restringir-me; e assim lembrarei o diagnosticador de certa vesânia que alastra pelo Ocidente europeu (e o Dr. Augusto de Castro agora satirizou saborosamente; a qual entre nós se adopta com ingenuidade lastimável) na obra “Poetas e Pintores Rilhafoles”; e como intérprete da antipatia popular pela religião de fogueira e alfange, na inesquecível peça “Santa Inquisição”, onde magistralmente se dramatiza o medo que, por três séculos, esse tribunal estrangeiro, nunca assimilado, verdadeiro quisto no organismo nacional, tanto prejudicou, e ainda prejudica, a nossa psicologia colectiva.

Júlio Dantas veio muito depois dos primeiros românticos, os grandes apologistas da Bíblia, dessa Bíblia amada, da Marquesa de Alorna, dos Cenáculos e dos Saraivas: Garrett, Castilho, José Silvestre Ribeiro, Herculano, e depois João de Deus, Gomes Leal, Augusto Gil, para citar alguns dos principais.

No tempo de Dantas, outros interesses, outras visões, desviaram os pensadores e os artistas, da atenção que sempre merecerá a Carta Magna da Sociedade que nos formou, e devemos conservar em constante serviço e perpétua reforma.

Vitorino Nemésio

Agora outra geração surgida, outra mentalidade se formava. O Dr. Augusto de Castro, na sessão que nos reportamos, ao responder, em nome da Academia, ao discurso do Prof. Nemésio, disse-lhe: “Dantas foi o homem duma época. Você, meu caro Nemésio, é o homem de outra”. De facto, se na geração de Dantas a Bíblia estava um tanto esquecida, na do Prof. Nemésio, que já está ultrapassada também, ela recebeu ataques e doestos que já não correspondem à atitude dos maiores pensadores vivos, especializados na teologia bíblica. Uma geração fora de apologia entusiasta; outra, a de Dantas, de desmedido ataque com pruridos de cientifico. A actual é de reabilitação, não direi de Escrituras Sagradas, que dela não necessitam, mas dos humanos que as estudam.

O Prof. Nemésio, que conheci nos tempos da Associação Cristã da Mocidade foi personagem representativa da geração penúltima, ao usar na minuciosa obra “Mocidade de Herculano” argumentos negativos que provêm da escola de Tubinga (1847-1853). Já lá vai mais dum século depois de Cristiano Bauer ter produzido o seu libelo ultra-racionalista; e estudos geológicos, e descobrimentos arqueológicos, e maior seriedade e serenidade de juízo trouxeram à ciência bíblica outra atitude e outra compreensão.

O Prof. Nemésio hoje um crente católico-romano, se quiser rever o que afirmou, nesta matéria, bem poderá corrigir o que escreveu há trinta anos; e decerto teria o aplauso da sua Igreja, que, por sua vez, está corrigindo, desde o importante documento “Spiritus Paraclitus”, a sua oposição à difusão das Escrituras Sagradas, o que, pràticamente, se tornava tão pernicioso como o desrespeitá-la.

Eduardo Moreira,
Rostos que vi, mãos que apertei,
Portugal Evangélico, nº 522-525, Abril–Junho de 1964, pp. 8-9.
 
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