quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A difusão da Bíblia em Portugal: ecos da acção de Robert Reid Kalley

A difusão da Bíblia em Portugal: ecos da acção de Robert Reid Kalley

A existência, no seio da minoria protestante em Portugal, de relações endógenas e exógenas de uma diversidade e complexidade substanciais, tende a demonstrar a desproporcionalidade entre a sua expressão quantitativa e sua importância qualitativa. Essa discrepância baseia-se, desde logo, no facto da existência dessa minoria constituir a representação da diferença, no sentido em que, a lenta multiplicação de fiéis evangélicos num país hegemonicamente católico, resulta na verificação de que, de facto, não existia uniformidade plena. Por conseguinte, apesar do país ter sido repetidamente representado como monolítico em termos religiosos, essa imagem não correspondia à verdade e, apesar da Igreja Católica definir frequentemente Portugal como uma nação imune à influência protestante, procurando controlar e garantir essa mesma imunidade, esse desiderato não foi plenamente alcançado, uma vez que, a existência de comunidades reformadas, ainda que minoritárias, a contradizia.

Ao longo do século XIX, sobretudo a partir da década de 40, desenvolveu-se, em Portugal, uma série de projectos e iniciativas sociais cuja natureza espelha, em certa medida, um plano de intervenção e implementação do cristianismo evangélico no interior da sociedade portuguesa (1).

Ocupou lugar de destaque a valorização da divulgação da Bíblia e de um novo projecto religioso junto das populações. As Sagradas Escrituras eram, efectivamente, a base partilhada e a característica distintiva do contexto hegemonicamente católico para todos os cristãos evangélicos na sociedade portuguesa oitocentista, uma vez que se opunha «[…] à prática religiosa e sacramental dominante e, na visão protestante, era uma ligação aos primórdios do cristianismo, à sua pureza e à sua verdade; evangelizar, fazer cristãos, era assim sinónimo de dar a conhecer a Bíblia» (2). A leitura e a divulgação das Escrituras desempenharam desde o início um papel essencial no proselitismo protestante em Portugal (3), sendo que todos os pioneiros desse protestantismo encetaram a sua missionação através da formação e integração de grupos de reflexão bíblica que acabaram posteriormente por se estruturar como comunidades protestantes. Reveladoramente, Robert Kalley apresentava-se nas primeiras páginas das Observações à instrução pastoral do Ex.mo Bispo do Porto, D. Américo, sobre o protestantismo, não como um protestante ou evangélico ou presbiteriano, mas como «Dr. em Medicina pela Universidade de Glasgow, aprovado na Escola Medico-Cirurgica de Lisboa e na do Rio de Janeiro, etc, leitor assíduo da Sagrada Escriptura durante o longo período de quarenta e tantos annos» (4). Essa centralidade da Bíblia manteve-se, de facto, como um dos pilares da sua actividade prosélita, bem como das comunidades que se lhe seguiram.

A difusão da Bíblia gerou uma reacção incisiva por parte das autoridades eclesiásticas e civis que, críticas em relação à utilização da mesma como instrumento de divulgação dos denunciados «erros protestantes», emitiram frequentes ordens de confiscação de exemplares bíblicos de origem evangélica (5). A reacção das comunidades reformadas e dos seus agentes difusores começava desde logo por se alicerçar numa postura defensiva em relação às citadas acusações de falsificação e manipulação (6). Uma vez provada a qualidade e rigor das edições bíblicas com origem protestante, seguia-se a procura da razão pela qual os católicos repetiam aquelas acusações e procuravam limitar a divulgação bíblica, o que resultava numa inversão das críticas. Nessa altura, eram as fontes evangélicas que se questionavam: «Porventura será por saber que […] seu systema transtorna o Evangelho de Deus, e TEM MEDO QUE O POVO SAIBA?» (7). O questionamento dos propósitos dos católicos e as insinuações em relação ao comportamento dos mesmos acabavam então por redundar na caracterização da hierarquia católica como obstinada na manutenção do povo na ignorância e na violentação contínua dos ensinamentos dos Evangelhos (8).

Porém, a partir das décadas de sessenta e setenta, apesar de persistirem posições firmes em relação à necessidade de limitação da difusão das Escrituras, a Igreja Católica revelou alguma abertura em relação ao papel a fornecer à divulgação bíblica. Essa abertura foi interpretada pelos protestantes portugueses como uma cedência. Nesse sentido, transmitia-se a ideia de que a hierarquia católica romana portuguesa tinha tido, finalmente, que reagir à pressão evangélica sob outra forma que não a da restrição, naquela que foi descrita por fontes protestantes como a ocasião em que «[…] apertada entre as pontas do terrível dilema – ou auctorisar a leitura da Bíblia, ou explicar os motivos por que tão severamente a prohibia – a Egreja de Roma não podia deixar de optar pela primeira. Transigiu, pois; não arrependida e contrita, mas receiosa e desconfiada […]» (9). No entanto, notava o autor, essa aparente abertura foi rapidamente matizada com a integração nessas edições bíblicas católicas de comentários e explicações determinados pela hierarquia eclesiástica que, desse modo, reassumia o controlo das consciências (10).

Defendida a pertinência e a legitimidade da difusão das Sagradas Escrituras, para além de reforçarem esse instrumento como uma parte integrante e essencial da evangelização, os representantes do cristianismo reformado testemunhavam acerca da eficácia desse método fundamental. Tal acontecia não apenas em relação aos missionários estrangeiros que desenvolviam actividades em Portugal, mas também em relação aos crentes e pastores nacionais.

Zacarias Clay Taylor escrevia, em 1909 à Convenção Baptista do Sul dos E.U.A., dando conta de que, apesar de difícil de «trazer para o Evangelho», o português, quando convertido «é geralmente piedoso e muito activo», exemplificando: «[…] o nosso irmão Sousa e Silva agora falecido, foi encarcerado 13 vezes, por ser colportor em Portugal e duas vezes no Brasil. Ele vendeu em três meses numa viagem pelo Rio S. Francisco 2.000 cópias das Escrituras» (11). Três décadas depois, lembrando esse período, Eduardo Moreira afirmava: «A obra de propaganda, de qualquer género que seja, mais completa que se tem feito no país (parte continental) é a da Sociedade Bíblica Britânica […]. Nos 123 anos de acção em Portugal, os exemplares difundidos, chegariam um para cada português vivo, ainda descontados os estragos naturais, se não fôra a queima promovida e prègada pelos sacerdotes de Roma. E a todos os recantos do país teem chegado, sem dúvida, êsses benditos exemplares escapos do fogo, […]» (12). Matizando a ideia de uma amplitude geográfica plena, provavelmente hiperbolizada pela componente prosélita adstrita, o valor desses testemunhos resultava sobretudo da demonstração de uma coexistência entre a divulgação bíblica e a perseguição, sem que a existência da primeira invalidasse o cumprimento do Código Penal por parte das autoridades competentes, e sem que a segunda impedisse que certas formas de proselitismo não católico se levassem a cabo no Portugal católico oitocentista.

Apesar de prioritária e fundamental, a divulgação bíblica não constituiu o único meio de penetração do protestantismo na sociedade portuguesa, tendo sido dinamizadas e desenvolvidas outras áreas de intervenção igualmente influentes. Essa metodologia teve como efeito a progressiva, apesar de lenta, inserção de elementos do protestantismo na construção de sociabilidades e a gradual coexistência daquelas representações católicas anteriormente analisadas com outras interpretações do movimento reformado, capazes de o perspectivar como tendo um papel na construção de um sistema de liberdade religiosa e como parte integrante de uma plataforma de tolerância.

(1) A ideia, múltiplas vezes repetida nas pastorais contra o cristianismo reformado, de que existia um plano alargado de protestantização do país e das suas colónias raramente é corroborado pelas fontes de origem protestante, mais pragmáticas no delineamento dos seus objectivos. No entanto, encontram-se algumas excepções. Zacarias Clay Taylor (1851-1919), um missionário da Junta de Missões no estrangeiro da Convenção Baptista do sul dos Estados Unidos, formado na Convenção Baptista Brasileira e encarregue pela mesma de examinar e organizar o trabalho existente em Portugal, dirigia a 22 de Dezembro de 1908 uma carta ao presidente de Missões da Convenção americana, onde afirmava: «Há cinco milhões de habitantes em Portugal, 22 no Brasil e 12 milhões nas colónias, ou 40 milhões de pessoas que falam português, e Portugal é a Mãe-Pátria. Portugal será uma boa base para da qual evangelizar estes 12 milhões das colónias, também o lugar para recrutar missionários nossos no Brasil» (Op.cit. Herlânder Felizardo – História dos Baptistas em Portugal. Lisboa: Centro Baptista de Publicações, 1995, p.21).
(2) Luís Aguiar Santos – Protestantismo. In Dicionário de História Religiosa de Portugal. Dir. de Carlos Moreira de Azevedo, vol.3. Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p.80.
(3) Como na maioria dos países onde se implementaram comunidades protestantes. Guilherme Ferreira afirmava a esse propósito, em 1906: «Dois grandes sucessos – os maiores dos tempos modernos – assombraram o mundo no decurso do XV e XVI seculos: a reforma da religião e a invenção da imprensa. Esta precedera de algumas dezenas de annos, apenas, a pregação de Luthero, isto é, apenas o tempo necessário para os impressores de Moguncia e de Nuremberga attingirem aquella relativa perfeição que havia de permittir-lhes multiplicar opportunamente, por milhares de milhares, as Bíblias que a Allemanha inteira havia de reclamar d´elles, para saciar a sede da sua justiça na fonte viva da Palavra de Deus» (Guilherme Luís Santos Ferreira – A Bíblia em Portugal: apontamentos para uma monografia, 1495-1850. Lisboa: Livraria Evangélica, 1906, p.5).
(4) Robert Reid Kalley – Observações à instrução pastoral do Ex.mo Bispo do Porto, D.Americo sobre o protestantismo. Porto: Imprensa Civilização, 1879.
(5) Robert Kalley alerta, em 1843, para a necessidade de mandar «[…] suspender o anathema pronunciado contra as Palavras de Deos, e que os Magistrados as não arranquem tão desapiedadamente das mãos do povo, violentando a propriedade alheia, contra todas as leis divinas e humanas, […]» concluindo que «[…] será justo que se restituão os livros de que já se apoderarão, e se aconselhe a leitura delles em vez de serem anathemizados; […]» (Robert Reid Kalley – Aos Madeirenses. Funchal: Tipografia do Defensor, 1843, p.1).
(6) Em 1879, Robert Kalley afirmava ter distribuído entre os portugueses «[…] milhares de exemplares das Escripturas Sagradas, traducção do padre pereira, e edição de Londres»[1], garantindo seguidamente: «Conferi todo o Evangelho de S. Matheus d´esta edição, com o impresso em Lisboa, approvado pelo cardeal patriarcha, e cotejando capitulo por capitulo, verso por verso, palavra por palavra, e lettra por lettra, achei-os iguaes, á excepção d´um lugar, onde havia um erro da imprensa, a saber: “sio” em vez de “sido”» (Robert Reid Kalley - Observações à instrução pastoral do Ex.mo Bispo do Porto,D. Americo sobre o protestantismo. Porto: Imprensa Civilização, 1879, p.28).
(7) Robert Reid Kalley – Observações à instrução pastoral do Ex.mo Bispo do Porto,D. Americo sobre o protestantismo. Porto: Imprensa Civilização, 1879, p.28. Os sublinhados são do autor.
(8) Na análise da pastoral contra o protestantismo do bispo do Porto, Kalley esclarecia abertamente a sua p1osição a esse respeito: «O trecho de S.Paulo com que principia, é digno de toda a attenção, pois nos apresenta uma maldição (anathema) fulminada pelo inspirado apostolo, contra todos os que transtornassem o Evangelho que elle annunciava. Nem deve de admirar que Deus approve esta maldição, porque o Evangelho que S.Paulo prégou e chamou meu era o Evangelho de Deus, e o Evangelho de Christo, de sorte que aquelles que o transtornam, transtornam as boas novas que Deus mesmo prégou para o bem do nosso desgraçado mundo; e portanto não só offendem a Deus, mas tambem enormemente prejudicam aos homens. […] a pessoa que altera o Evangelho, merece ser amaldiçoada; e conforme as citadas palavras, está amaldiçoada, e por Deus. Quem estará, porém, incurso n´esta terrivel maldição? Por certo é todo aquelle que annuncia um Evangelho differente do Evangelho annunciado por S.Paulo. […]» (Robert Reid Kalley – Observações à instrução pastoral do Ex.mo Bispo do Porto,D. Americo sobre o protestantismo. Porto: Imprensa Civilização, 1879, p.3-5).
(9) Guilherme Luís Santos Ferreira – A Bíblia em Portugal: apontamentos para uma monografia, 1495-1850. Lisboa: Livraria Evangélica, 1906, p.56.
(10) Guilherme Ferreira declarava então a esse propósito: «Ao reviramento operado nos immutaveis principios da egreja romana succedeu, como era de esperar, egual reviramento na consciência dos seus adeptos. E o livro até então perseguido como de perigosa leitura para a salvação das almas, passou a ser considerado útil para robustecer a fé e acrysolar a piedade dos crentes; não, certamente, pelas boas novas de salvação, que sempre contivera, mas pelas cerebrinas annotações com que iam illustral-o, e completal-o, mui doutos e catholicos varões!» (Guilherme Luís Santos Ferreira – A Bíblia em Portugal: apontamentos para uma monografia, 1495-1850. Lisboa: Livraria Evangélica, 1906, p.67). As denúncias em relação à ilegitimidade dessas notas multiplicaram-se nos escritos protestantes da segunda metade do século XIX, onde se perguntava: «Quais notas? Existiam, porventura, quaesquer notas junto do texto da Vulgata recebido pelo Concilio de Trento? […] Confessa, Maldade! Confessa que bem sabes que taes notas nunca existiram a par d´aquelle texto! E que aproveitaste uma subtil argúcia de Benedicto XIV para sobre elle architectares uma dolosa accusação, para dares por estabelecida uma doutrina errada, […]» (Guilherme Luís Santos Ferreira – A Bíblia em Portugal: apontamentos para uma monografia, 1495-1850. Lisboa: Livraria Evangélica, 1906, p.111).
(11) Zacarias Clay Taylor citado por Hêrlander Felizardo – História dos Baptistas em Portugal, p.23. O missionário acrescentava ainda, na mesma missiva, que «Todos os tipos de trabalho evangélico estão restritos aos recintos fechados, sendo contra a lei distribuir folhetos nas ruas. Colportores da Sociedade Bíblica são constantemente lançados na prisão.» (Zacarias Clay Taylor citado por Herlânder Felizardo –História dos Baptistas em Portugal. Lisboa: Centro Baptista de Publicações, 1995, p.23).
(12) Eduardo Moreira – A situação religiosa em Portugal, Conspecto e Considerações. Lisboa: Edição do Portugal Novo, 1935, p.14.

Rita Mendonça Leite

 
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