Padre Abel Varzim
Justamente quando púnhamos pé naquele “C. D. 4” de asas velozes e pulmões valentes, que nos levou à Suíça, coração desta valentudinária Europa, empreendia ele a derradeira viagem, não para qualquer região de lagos e montanhas, mas para melhor, muito melhor: a mansão do Santo Monte Eterno, no lago da Paz perpétua, de águas vivas que para sempre dessedentam.
Conheci-o ele, ao Padre Dr. Abel Varzim, na Igreja da Encarnação, em Lisboa, quando ali era pároco. Levara-nos lá um movimento esboçado pelo Dr. José da Costa Moreira, com o fim de se obter uma melhor compreensão entre os cristãos das duas escolas exegéticas do Evangelho único, trazido por Jesus Cristo. Pretendia-se criar uma Irmandade ou Grémio da Boa Vontade... Fôramos antes recebidos pela fidalga lhaneza do senhor Conde de Azinhaga, no evocador palácio a S. José. Haviam-se já trocado impressões com o desassombro que a lealdade cortês sugere.
E agora ali estávamos nas dependências dum histórico templo lisboeta, rodeados de objectos evocadores de passos certos ou errados, como sempre são os da família humana, por toda a parte onde ela vive e sofre.
Éramos um grupo de cristãos reformados, convidados por cristãos romanos, na busca aparentemente sincera duma aproximação humana, na qual, ao ver-se o corpo simbólico da Humanidade ferido e roubado na estrada da vida, se quer que ninguém seja imitador do sacerdote ou levita da parábola do Nosso Senhor, ao passarem de largo; ainda que, nos cuidados fraternos, se possa parecer cismático, como o era afinal o samaritano compadecido.
O Padre Abel Varzim, o pároco que veio a presidir às primeiras reuniões, com firme serenidade e seguro poder de observação, doutor formado em Lovaina, trabalhara no “Jocismo”, movimento operário baseado na doutrina social de Roma, segundo os princípios da Encíclica de Leão XIII “Rerum Novarum”; representara a sua Igreja em duas legislaturas da Assembleia Nacional; fora professor num seminário e agora, desde 1951, paroquiava aquela área da cidade que inclui o Bairro Alto, o que o levara a procurar extinguir o cancro social da prostituição, tradicionalmente ali enraizado. Cristão católico educado na disciplina da Unidade-a-todo-o-transe, buscada e até agora jamais encontrada, mas sempre exigida pelo adorado Fundador, pela primeira vez presidia a tão heterogénias sessões. Os visitantes, protestantes de vário matiz, apresentavam-se como testemunhas da pureza bíblica, aliás, vista em diferentes perspectivas e fruto da liberdade que o Filho de Deus prometeu e concede, mesmo apesar de não sabermos fazer um uso perfeito dela. Ali nos manifestávamos todos, nesse misto de anelos de genuidade e de fidelidade diferentemente exercidos e por isso desencontrados no resultante final.
Depois de alguns discursos expositivos das respectivas posições, o Dr. Varzim, espírito prático e mentalidade experimentada, fez aos presentes a seguinte pergunta: “que poderemos nós desde já realizar?”, ao que procurei dar resposta, filha também de longa experiência: “Se nos deixarmos de alcunhar, aos cristãos romanos, de idólatras, e aos reformados, de herejes, uma primeira iniciativa seria a de interceder, junto de particulares ou não particulares, a favor dos perseguidos por sua crença religiosa, vítimas da intolerância, em casos de despedimento, preterição ou maus tratos”.
Imediatamente o Padre Varzim replicou: “eu quero fazer parte dessa comissão, se se construir”. E pouco mais se pôde adiantar; mas marcaram-se posições.
Era esse o homem que Deus agora chamou, na idade de 62 anos. Passaram-se tempos sem que nada se pudesse realizar, decerto por falta de maturidade no ambiente em que vivemos. Vinha longe ainda o pontificado de João XXIII e a convocação do Vaticano II com observadores ortodoxos e evangélicos.
“Quantum mutatus ab illo!” poderíamos agora exclamar, na língua que já não é exclusiva, na liturgia da tradição ocidental. E acima de tudo a Bíblia já é lida, difundida e citada como o não era.
Justamente quando púnhamos pé naquele “C. D. 4” de asas velozes e pulmões valentes, que nos levou à Suíça, coração desta valentudinária Europa, empreendia ele a derradeira viagem, não para qualquer região de lagos e montanhas, mas para melhor, muito melhor: a mansão do Santo Monte Eterno, no lago da Paz perpétua, de águas vivas que para sempre dessedentam.
Conheci-o ele, ao Padre Dr. Abel Varzim, na Igreja da Encarnação, em Lisboa, quando ali era pároco. Levara-nos lá um movimento esboçado pelo Dr. José da Costa Moreira, com o fim de se obter uma melhor compreensão entre os cristãos das duas escolas exegéticas do Evangelho único, trazido por Jesus Cristo. Pretendia-se criar uma Irmandade ou Grémio da Boa Vontade... Fôramos antes recebidos pela fidalga lhaneza do senhor Conde de Azinhaga, no evocador palácio a S. José. Haviam-se já trocado impressões com o desassombro que a lealdade cortês sugere.
E agora ali estávamos nas dependências dum histórico templo lisboeta, rodeados de objectos evocadores de passos certos ou errados, como sempre são os da família humana, por toda a parte onde ela vive e sofre.
Éramos um grupo de cristãos reformados, convidados por cristãos romanos, na busca aparentemente sincera duma aproximação humana, na qual, ao ver-se o corpo simbólico da Humanidade ferido e roubado na estrada da vida, se quer que ninguém seja imitador do sacerdote ou levita da parábola do Nosso Senhor, ao passarem de largo; ainda que, nos cuidados fraternos, se possa parecer cismático, como o era afinal o samaritano compadecido.
O Padre Abel Varzim, o pároco que veio a presidir às primeiras reuniões, com firme serenidade e seguro poder de observação, doutor formado em Lovaina, trabalhara no “Jocismo”, movimento operário baseado na doutrina social de Roma, segundo os princípios da Encíclica de Leão XIII “Rerum Novarum”; representara a sua Igreja em duas legislaturas da Assembleia Nacional; fora professor num seminário e agora, desde 1951, paroquiava aquela área da cidade que inclui o Bairro Alto, o que o levara a procurar extinguir o cancro social da prostituição, tradicionalmente ali enraizado. Cristão católico educado na disciplina da Unidade-a-todo-o-transe, buscada e até agora jamais encontrada, mas sempre exigida pelo adorado Fundador, pela primeira vez presidia a tão heterogénias sessões. Os visitantes, protestantes de vário matiz, apresentavam-se como testemunhas da pureza bíblica, aliás, vista em diferentes perspectivas e fruto da liberdade que o Filho de Deus prometeu e concede, mesmo apesar de não sabermos fazer um uso perfeito dela. Ali nos manifestávamos todos, nesse misto de anelos de genuidade e de fidelidade diferentemente exercidos e por isso desencontrados no resultante final.
Depois de alguns discursos expositivos das respectivas posições, o Dr. Varzim, espírito prático e mentalidade experimentada, fez aos presentes a seguinte pergunta: “que poderemos nós desde já realizar?”, ao que procurei dar resposta, filha também de longa experiência: “Se nos deixarmos de alcunhar, aos cristãos romanos, de idólatras, e aos reformados, de herejes, uma primeira iniciativa seria a de interceder, junto de particulares ou não particulares, a favor dos perseguidos por sua crença religiosa, vítimas da intolerância, em casos de despedimento, preterição ou maus tratos”.
Imediatamente o Padre Varzim replicou: “eu quero fazer parte dessa comissão, se se construir”. E pouco mais se pôde adiantar; mas marcaram-se posições.
Era esse o homem que Deus agora chamou, na idade de 62 anos. Passaram-se tempos sem que nada se pudesse realizar, decerto por falta de maturidade no ambiente em que vivemos. Vinha longe ainda o pontificado de João XXIII e a convocação do Vaticano II com observadores ortodoxos e evangélicos.
“Quantum mutatus ab illo!” poderíamos agora exclamar, na língua que já não é exclusiva, na liturgia da tradição ocidental. E acima de tudo a Bíblia já é lida, difundida e citada como o não era.
Eduardo Moreira,
Rostos que vi, mãos que apertei,
Portugal Evangélico, nº 526-528, Agosto–Outubro de 1964, pp. 5-6.